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O dia em que desisti de ser Dostoiévski

Thais Ferreira Gattás
Jul. 5 - 4 min read
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Por Thais Ferreira Gattás

Há um dia na vida em que você descobre que pode ser o que gosta de fazer. Eu tinha oito anos quando percebi que escrever me dava mais alegria do que saborear churros de doce de leite na praia. Meus cadernos tinham frases soltas, diálogos, sonetos melodramáticos e peças inacabadas. Cada livro era um portal mágico que provocava algo novo na imaginação. Pena é que logo a gente olha para o lado. E o meu erro foi crer, Paralamas do sucesso, que ao invés de acreditar na minha mão canhota, eu deveria me espelhar em quem escrevia histórias antes de mim. 

O dia em que desisti de ser Dostoiévski é o mais importante de toda a minha trajetória com a escrita. O cara era o topo do monte Everest para mim. Russo, complexo e dono de uma literatura quase intraduzível. Nunca tive a menor chance de ser ele. Não é por acaso que não vim homem a esse mundo. Ele nasceu em Moscou e eu em Blumenau. Ele curtia um drinque destilado e eu sou dos fermentados. Queimei a largada da escrita: sou o clichê da escritora com medo de nunca ser tão boa como um clássico capaz de atravessar gerações. Afinal, quem terá paciência de ler uma história contada por quem está começando? 

Vou contar um segredo: nunca serei um clássico russo. Sou uma atualidade catarinense que gosta de gente e de histórias bordadas a mão. Meu ofício é a delicada costura do que vejo por aí e que preciso contar. Meu método tem um quê da paciência dos pescadores que aguardam a chegada de tainhas. Minhas crônicas são feitas de renda de bilro e falam de todos nós. 

Agora sim, tirei um sapato que apertava por uma vida inteira. Agora sim, as palavras me têm na palma da mão. Agora sim, o espelho reflete a minha própria caligrafia. Agora sim, ajusto o tom, o volume e o sentido do que é escrito. Agora sim, bebo da fonte sem me parecer com quem admiro. Agora sim, escrevo sobre o que nos pega pelo avesso de maneira que todos possam compreender. Agora sim, não preciso ser Dostoiévski. Um amigo que não conheci e que descansa em paz depois de crimes e castigos que sofremos numa parceria de sucesso nunca firmada. Soube que ele dizia que seu mal era o que chamo de meu bem: a consciência. É, nunca fomos um par perfeito. 

Você pode substituir essa crônica por sua vida, a palavra escritora pela profissão que resolveu abraçar e o Dostoiévski por qualquer mito que encasquetou que deveria ser ao invés de você mesmo. Sua vida. Guitarra. Van Halen. Sua vida. Tecnologia. Steve Jobs. Sua vida. Teatro. Shakespeare. Sua vida. Psicologia. Jung. 

Faça-se um favor: não durma mais nenhuma noite com o barulho desses caras. Respire a criação maravilhosa do que fizeram e deixe descansar. Liberte o gênio vivo que mora nos cafundós da sua mente. Não tenha a cara de ninguém além da sua. Eu, de saia, escrevo mais uma história do único jeito que sei. Eu, de saia, vejo como brilham as coisas singelas que só você pode tirar de dentro da própria cartola.


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