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Covid-19. Saúde. Doença. E a Criatividade como Transcendência.

Covid-19. Saúde. Doença. E a Criatividade como Transcendência.
Lizia Barcellos
Apr. 19 - 16 min read
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A humanidade adoeceu. É verdade! 

Estamos vivendo algo que eu nunca imaginei estar viva para ver acontecer. De tantos filmes de “ficção” científica, alienígenas e robôs - aos nove anos de idade era fissurada por Exterminador do Futuro - tudo o que já cogitamos ser possível, mesmo que fosse imaginação, não pensamos num ataque silencioso, invisível e tão devastador quanto este. Ao menos, eu não pensei.  As pessoas estão desesperadas, preocupadas, algumas, ainda, permanecem vivendo como se nada estivesse acontecendo. Outras, já compreenderam a grandiosidade do que nos afeta e estão seguindo seus dias transformando esse adoecimento em algo produtivo, no sentido de ressignificar suas vidas, suas relações, seus trabalhos, seus consumos.

 

Agora eu pergunto à vocês. 

Quem nunca ouviu dizer que “O ser humano é o câncer do mundo”? 

Eu sempre escutei dizerem isso e nunca gostei. Por alguns motivos. Além de achar esse conceito extremamente pessimista em relação à nós, humanos, é bem possível que eu me sentisse afrontada. Óbvio! Eu sou ser humano! Posso me ver com mil defeitos, mas nunca me vi como um câncer. Como alguém pode dizer isso de si mesmo?! E o quê Covid-19 e pandemia têm a ver com câncer?

 


 

Semanas atrás, ao passar por alguns dias com crise de enxaqueca e desconforto físico, fui pega imersa em reflexões sobre saúde e doença, processos de cura e todo o conhecimento que angariei a partir de experiências pessoais e estudos acadêmicos sobre Câncer e as Estratégias de Enfrentamento utilizadas por pacientes oncológicos que eu atendia no hospital em época dos estágios de formação da Graduação. Talvez seja pertinente contar que sou psicóloga e o tema do meu trabalho de conclusão de curso, há pouco mais de dez anos, era exatamente esse: As percepções dos pacientes com câncer em relação às Estratégias de Enfrentamento da doença e a forma como isso dava - ou não - sustentação emocional para atravessarem o adoecimento com melhor nível de saúde. Vale dizer, também, que no mesmo período, meu pai estava hospitalizado, atravessando um pesado tratamento para se curar de câncer. Isso mesmo! Meu pai era uma dessas pessoas que se utilizam de diversas estratégias de enfrentamento para superar o câncer e refazer a vida.

Agora, nos meus dias atuais, em uma semana mergulhada no meu silêncio obrigatório pela dor de cabeça que eu sentia e no repouso necessário para restabelecer meu bem estar, surgiram alguns insights em relação à todo esse processo de adoecimento em massa que estamos vivenciando recorrente da pandemia causada pelo chamado “novo coronavírus”. Os insights foram possíveis primeiro, porque entrei em contato com meu próprio corpo fragilizado e, assim, pude ouvir o convite interno que esse corpo comunicava. Segundo, porque meu cérebro deve ter dado um “BUM” de sinapses e associações, ligando todos os pontos sobre afinal, o que é o Câncer, sobre os processos de criatividade que nós, humanos, somos capazes de desenvolver e sobre como Saúde e Doença não são, ao contrário do que costumamos considerar, situações antagônicas e excludentes. E nem mesmo deveríamos considerá-las como meras situações positivas ou negativas, respectivamente. Explico.

 

Quando uma pessoa descobre que está com câncer, uma bigorna cai em cima de sua cabeça. Junto da notícia do diagnóstico, vem o sentimento de perda da saúde, medo da morte, culpa pelo adoecimento, raiva de si mesmo, descrença na vida, dúvidas infinitas, ansiedade em relação ao tratamento, solidão, entre tantas outras emoções suscitadas pela nova realidade. Com isso, essa pessoa pode ter diversas reações. Negar à si mesma sua condição atual, ou seja, não se perceber como alguém que está com uma doença crônica ou não dar a devida importância às recomendações médicas, por exemplo. Pode não mobilizar nenhuma ação de mudança diante deste estado de crise da sua saúde. Pode seguir as orientações médicas e realizar os tratamentos encaminhados sem, no entanto, ir além desse movimento em prol da recuperação da sua saúde física, biológica. Ou, pode mergulhar na experiência que este adoecimento acarreta e buscar, de forma integral, mecanismos de autocuidado e ampliação do seu campo de percepção em relação à si e sua vida.

 

Do ponto de vista biológico, o câncer é uma disfunção celular através da qual o corpo passa a ser considerado seu próprio inimigo e, células que antes eram saudáveis, começam a adoecer e, consequentemente, podem adoecer todo o organismo, em velocidade e intensidade variáveis, através de metástases. A grande questão é que o adoecimento nunca é apenas biológico. E uma pessoa que desenvolve um câncer, já estava, de antemão, adoecida emocionalmente. Algo em suas vivências subjetivas e emocionais já estavam disfuncionais. Ela apenas não havia percebido. Daí, então, geralmente o que acontece é um agravamento no quadro da sua saúde geral. O humor fica afetado, oscilando entre estados deprimidos ou ansiosos. O corpo fica debilitado em decorrência tanto do tratamento químico e medicamentoso, quanto pela doença. Energeticamente a pessoa sente-se desvitalizada e enfraquecida. E, emocionalmente experimenta sensações também oscilantes: hora de fracasso e impotência; hora de esperança, autonomia e poder em relação à sua recuperação, dependendo do nível de autoresponsabilidade com o qual ela encara sua doença e seu processo de cura. 

 

Agora, observem, estou descrevendo, de forma bastante sucinta e superficial, alguns fatores envolvidos na vida de uma pessoa com câncer, uma doença grave, crônica, que exige diversos fatores de mudança e adaptação por parte desse paciente. Desde cuidados nutricionais, rotinas de tratamentos, exames e consultas médicas, atividade física, até um profundo processo de autoconhecimento e abertura para novas possibilidades de ser e existir. Contudo, se estivermos atentos, vamos conseguir perceber que uma crise de enxaqueca, por exemplo, também ocasiona demandas e mudanças em nossa rotina, assim como uma doença grave. Dadas as devidas proporções, logicamente, mas dores, febres, gripes também são capazes de nos fazer parar, descansar, silenciar, pedir ajuda, cuidar da alimentação, beber mais água, querer carinho, falar de como estamos nos sentindo, perceber nossa vulnerabilidade e por aí vai. Nesse sentido, poderia-se afirmar que, de alguma maneira, o adoecimento é capaz de gerar uma atitude de sair do lugar-comum, da zona de conforto, desafiando a pessoa a experimentar algo novo, fora daquilo que já está estabelecido como sendo seu padrão de funcionamento.

 

E é aí que entra o paradoxo Saúde&Doença. Se, quando adoecemos, prestamos atenção em nós mesmos e buscamos, na prática, o autocuidado, podemos chegar à conclusão de que doença não é necessariamente algo negativo, já que pode nos levar à atitudes transformadoras e inovadoras direcionadas às nossas necessidades pessoais, humanas, mais amplas e profundas. Nesse sentido, doença não seria o contrário de saúde mas, sim, um caminho para se alcançar níveis mais satisfatórios de saúde integral e, ainda mais além, formas renovadas de viver.

 

Walter Cannon (1871-1945), foi um fisiologista americano que desenvolveu o importante conceito denominado Homeostase, originário da junção dos radicais gregos homeo, que significa “igual’ ou “similar” e stasis, que significa “estático”. O conceito foi sistematizado e publicado pela primeira vez em 1929 no artigo “Organization for Physiological Homeostasis”. Cannon, naquela época, já estudava as interações entre o sistema nervoso autônomo e a fisiologia das emoções. A partir das suas conclusões surgiu o conceito hoje conhecido como “reação de luta ou fuga” manifestado em situações urgentes/emergentes, percebidas como ameaçadoras, e a constante busca do organismo por manter o equilíbrio necessário para o desempenho saudável de suas funções e preservação da vida. Ainda nas raízes da fisiologia e da biologia, encontramos princípios de estudos e teorias que discorrem a respeito da capacidade natural de autorregulação dos seres vivos e cura diante de estados de perturbações. O que se defende é que, quanto mais complexa e autônoma a forma de vida, na escala evolutiva dos seres vivos, maior a capacidade de autorregulação e homeostase. Claro! Porque, quanto maior a complexidade, maior o nível de interação e relação com o meio ambiente. Sendo assim, maior também o nível de vulnerabilidade do organismo. Isso acaba por exigir que estas formas de vida mais complexas desenvolvam recursos cada vez mais apurados, mais refinados de homeostase e equilibração diante das intempéries da vida. 

O ser humano, por sua vez, é constituído de grandes dimensões que, de certa forma, são as responsáveis por nos tornar quem somos no que se refere ao nível de complexidade na escala das espécies de vida do Planeta Terra. Essas dimensões que nos compõem são as seguintes: física, econômica, social, familiar, emocional, energética, natural e espiritual. Ou seja, somos uma forma de vida extremamente complexa em nossa estrutura, ao mesmo tempo que somos, por essa mesma razão, proporcionalmente vulneráveis aos ambientes externo e interno. Pois bem, se somos tão complexos ao ponto de sermos constituídos por diversas dimensões, isso significa que temos inúmeros grandes pontos de contato com o mundo externo, com o meio que nos rodeia e interage conosco e, portanto, diferentes pontos de vulnerabilidade às perturbações ocasionadas pela relação com o ambiente exterior. E, para irmos ainda mais adiante nesse raciocínio, somos dotados de um mundo interno, chamado psique, que também interage, o tempo todo, com essas dimensões que nos constituem humanos e interfere em nossa subjetividade e na forma como nos relacionamos cada um consigo mesmo, como um sistema fechado, e com o meio ao nosso redor.

A partir e através, então, dessas interações, hora satisfatórias, hora perturbadoras, somos impelidos a encontrar recursos para restabelecer nosso estado de homeostase, no caso de estarmos sendo afetados por interferências que perturbem nossa estabilidade. Assim, instintivamente, como organismos vivos e naturais que somos, aciona-se em nós a reação de luta-ou-fuga de acordo com nossos padrões de funcionamento, observação do meio e da ameaça e as alternativas possíveis para lidar com a situação ameaçadora. Vejam que, aqui, ainda refiro-me à um mecanismo de manutenção e preservação da vida, no sentido em que homeostase refere-se, de acordo com seus radicais, ao estado estático das coisas, ao estado permanente e igual. É claro que, no que tange a função de resguardar a vida, a autorregulação e a homeostática são ferramentas preciosas à todos os seres vivos, inclusive ao ser humano. 

 


 

Mas o que eu quero propor aqui, e deixo explícito que essas formulações são meras conjecturas a partir de um ajuntamento de teorias e vivências pessoais e profissionais sem, contudo, um aprofundamento científico necessário para ser considerado, em si, uma teoria fechada, mas o que proponho, enfim, é estendermos o olhar para os estados de adoecimento como algo que requer de nós que utilizemos nossos recursos de superação em situações de crise e a função e o alcance da criatividade nesse contexto. Para isso, me acompanhem. Vamos voltar lá no início, quando eu falava sobre câncer e outras formas de enfermidade.

 

Enquanto eu descrevia algumas das intercorrências e os efeitos danosos do desenvolvimento de células cancerígenas nos seres humanos e em suas vidas, também citei algumas reações que uma pessoa pode ter em relação à sua nova realidade, após entrar em contato com seu diagnóstico e as novas necessidades advindas do processo de adoecimento. Essas reações, relembrando, podem variar desde a negação do novo estado que afeta sua saúde, até o mergulho profundo em busca de novas percepções e posturas inovadoras diante de si mesma e da vida. Nesse caso, pode-se perceber que, quanto mais distante do seu padrão de funcionamento, quanto mais ampliada a busca por recursos de superação do estado de adoecimento, mais complexas e apuradas se tornam as ferramentas de enfrentamento em relação à doença.

Sendo assim, quando uma pessoa ousa ir cada vez mais longe daquilo que havia estabelecido para si como padrão de vida, mais ela amplia o seu repertório vivencial. Curiosamente, como um paradoxo, ela parte de um ponto em que se vê doente e, não satisfeita em apenas seguir o protocolo de tratamento para voltar ao estado anterior à doença, ela desenvolve recursos cada vez mais aprimorados de percepção e de relação com ela mesma, com os outros e com a vida. E é nesse processo de ampliar-se e encontrar em si recursos antes nunca conhecidos que ela passa a fazer uso da criatividade como estratégia de auto-resgate da condição de enferma e de transmutação de quem ela era como ser humano antes de adoecer e quem vai se tornando, enquanto cuida de si e experimenta novas possibilidades.

E essa é uma visão belíssima!

Porque é a visão de uma pessoa apropriando-se do seu grande potencial criativo como força curadora e reguladora da vida. Nesse sentido, se vocês me acompanharam, é possível que consigam perceber a função transcendente da Criatividade. Como uma passagem que nos permite percorrer caminhos desconhecidos e encontrar o poder natural do ser humano de criar para si e, consequentemente, para o mundo, novas realidades mais satisfatórias, integradas e complexas.

 

Então, podemos concordar, quem sabe que, sob esse ponto de vista, a própria doença pode ser um recurso criativo do organismo para chamar atenção às dimensões constituintes do ser humano que estejam descuidadas, negligenciadas e, portanto, não estão sendo desenvolvidas para o alcance máximo de suas funções na vida. A doença, nessa perspectiva, seria um meio criativo pelo qual o organismo manifesta-se para impulsionar o avanço das potencialidades humanas a partir da busca pela regulação e homeostase, num primeiro nível, e pela criação e transcendência das realidades em um nível mais profundo e ampliado.

 

Numa esfera social e coletiva atual, eu disse, a humanidade adoeceu. É verdade! Estamos vivenciando os plenos sintomas desse adoecimento trazido à tona pelo Covid-19. E eu, ainda, às vezes imagino que estou dentro de um dos filmes de ficção científica que assisti ao longo da vida. Mas, não. É realidade. Existem cenários muito tristes configurados a partir dessa vivência. Outros cenários, parecem mais promissores. Agora, se levarmos em consideração tudo o que aqui foi antes articulado, consigo visualizar toda essa nova realidade como sendo os sintomas dos danos causados por um adoecimento muito anterior à explosão dessa febre dos últimos meses. É como se a pandemia fosse o câncer já alastrado pelo organismo que somos como humanidade, em decorrência da enfermidade já instalada anteriormente e não cuidada. Agora, estamos sendo provocados e obrigados a olhar para a ferida, cuidar dessa ferida, encontrar novas formas de nos relacionarmos com a vida, gerar recursos inovadores para preservar essa mesma vida, atentar para todas as dimensões que nos constituem humanos e extrair ao máximo nosso potencial criativo individual e coletivo para a transcendência das nossas realidades particulares e planetárias.

 

Vamos juntos, humanos?!


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