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Os professores e a evolução digital intensiva

Os professores e a evolução digital intensiva
Ana Emília Cardoso
May. 3 - 8 min read
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Como escritora e contadora de histórias sei que prender a atenção de alguém é um desafio. Como socióloga, estou pesquisando os impactos da pandemia na vida dos professores, em sua maioria, tendo que desenvolver video-aulas a toque de caixa. Que dureza!

No mundo ideal da aula à distância, o aluno está sentado confortavelmente, num local iluminado, com caderno e lápis na mão, de fone de ouvido, respondendo com os lábios ao que você pergunta, resumindo o que você fala. Está ao lado de uma janela aberta, com um copo d'água fresca para tomar, as mãos bem lavadas com água e sabão. No final da aula, desliga o computador e pensa: caramba, que incrível tudo isso.

Que bom se fosse assim. Na vida real, muitas vezes o aluno vai estar deitado na cama, no escuro, câmera apagada, meio dormindo. Ou, próximo de alguém jogando video-game ou de uma televisão ligada bem alto, recebendo quinhentas notificações, comendo pipoca e não anotando nada. Possivelmente numa internet bem fraca. E aí, como que a gente faz pra tocar esse aluno-espectador?

Ouvindo relatos de diversos professores da rede pública e privada do Brasil, percebemos que as dores têm sido vastas. Pouquíssimas escolas usavam plataformas digitais, treinavam suas equipes para produzir vídeos ou trabalhavam atividades de forma não usual. O resultado tem sido muito cabelo em pé e a necessidade de aprender de tudo um pouco, de ontem para hoje.

Talita é professora de inglês há 15 anos, mora no interior e nunca havia gravado um vídeo na vida. Não fazia stories no Instagram, nem tinha canal no YouTube. Muito pelo contrário: era do presencial, da sala de aula, do cara a cara. Logo na primeira semana de abril, teve que gravar vídeos em inglês para turmas da pré-escola ao terceiro ano do ensino médio. "Na frente do diretor, acompanhada dos meus três filhos, de 2, 7 e 8 anos”, contou-nos com a voz embargada. É mole ou quer mais? Está nas suas costas - também - a responsabilidade de manter os alunos matriculados. Realidade de muitos professores.

Roberta trabalha em duas escolas particulares que atendem crianças de classe média alta. Cada escola traz uma abordagem diferente. Uma quer usar livros, outra quer atividades suplementares ao conteúdo que ‘deverá’ ser reposto mais adiante. Sem qualquer conhecimento digital prévio, ela está tendo que driblar as dificuldades tecnológicas. Nenhuma escola lhe ofereceu computador ou um celular mais moderno para produzir os conteúdos; ambas lhe cobram planejamentos, vídeos, tarefas, aulas ao vivo e disponibilidade plena de horários. 

A vida de Mara, professora em duas escolas particulares distintas, também não está fácil. "Estou exausta, trabalhando como nunca. Dou 10 a 12 aulas por dia, com uma energia muito alta. Eu não dou aula monótona, eu tento fazer muitas expressões faciais, é importante passar emoção pro aluno. Mas isso cansa demais”, desabafa. Essa empolgação, ao menos, ela aprendeu que era importante no treinamento que teve em uma das escolas que trabalha, logo no início da pandemia.

Essa compensação de energia no vídeo, para suprir a falta presencial, é uma solução, mas também uma carga extra de trabalho. “Na primeira semana, eu falava sem parar nas aulas que dou no Zoom. Fiquei sem voz diversas vezes. Agora, um mês depois, aprendi a relaxar, respirar, fazer pausas”, relata Manita, professora de design.

Na rede pública, a falta de condições grita. Professores estão criando formas para manter o vínculo usando os pouquíssimos recursos disponíveis. “O WhatsApp é o que funciona para os meus alunos”, conta Paula, professora de quinto ano de uma escola de região metropolitana. Seus alunos não têm celular, estão curtindo ter acesso ao aparelho das tias, das mães ou avós. Ela combina um horário, manda uma atividade e os alunos lhe respondem com fotos e áudios. “Mostrar que eu me importo, que eles podem ler os livros, conversar comigo e ter um feedback de suas atividades é o que posso fazer neste momento”, conta a professora.

Não raro os alunos têm problemas de diversas ordens. ”Não tem internet, dados, espaço de memória ou o dono do celular precisa do aparelho para trabalhar”. A experiência de Nani, professora de Química de escola pública na região metropolitana, é ainda mais complexa. “Os professores estão frustrados. Não tem como educar com qualidade neste cenário. A maior parte dos meus alunos mora em área rural e não consegue se conectar. Outros são idosos e não têm telefones que possam baixar aplicativos. Na área rural não tem sinal. Alguns alunos não tem celular. A gente tá sentindo a pressão do Estado de fazer os alunos entrarem no sistema, que - às vezes não funciona nem pra nós”, desabafa.

Ela conta que coloca a aula no sistema, mas a média de alunos assistindo às aulas é 3 a 4. "Tem escola em que nenhum aluno entrou ainda. Tem uma escola que tem 12 que estão entrando, de turmas de 30, 40 alunos. É uma realidade bem diferente da pessoa mais privilegiada. Meus alunos precisam de atenção, de carteira em carteira…”

Seria muito injusto dizer que essa transição, essa situação é boa. No caos e na incerteza, somos obrigados a encontrar caminhos e soluções. As escolas estão tateando. Os professores estão quase enlouquecendo. Uma sociedade e um novo ensino está surgindo, com gente de todas as idades reaprendendo a se comunicar. “Nada vai voltar ao normal, porque o normal já mudou”, analisa Isabela, coordenadora pedagógico de pré-escola e ensino fundamental.

A professora Mara resume bem o quadro: "A gente sabia que ía ter que migrar para o digital um dia, que ía ter que se reinventar, se adaptar, mas não dessa forma tão abrupta. O professor hoje tem que ser roteirista, recreacionista, educador e, de preferência, ator. Não está sendo fácil, mas tenho certeza que não aprenderíamos tanto em 10 anos de teoria se não fosse essa pandemia”.

Para o arte-educador Guga Cidral, a questão envolve criatividade, mas também amor: como ser orgânico com esta tecnologia toda? Não somos atores, jornalistas, a gente é educador, de alma e coração. E todo esse movimento é da gente se reinventar, de alma e coração também. Todos sairem transformados dessa pandemia. Crianças e idosos aprenderam a mexer em tantas tecnologias que certamente sua forma de aprender e interagir mudou. Será que nossos corações também não saem com um repertório maior disso tudo?

Ana Cardoso é jornalista e socióloga, autora de quatro livros, entre eles o best seller A Mamãe é Rock e o guia para pais e mães de adolescente A Mamãe é Punk. Colunista da Revista Pais & Filhos, coordena o projeto Back to Humans, um monitoramento sobre as transformações no mundo do trabalho a partir da tecnologia, processo hiperacelerado pelo covid_19. Está em quarentena com o marido e as filhas Anita, 15 anos, e Aurora, 7 anos, há 50 dias e ainda não surtou.

Conheça mais sobre o Back to Humans e a Ana no site backtohumans.com.br e no instagram


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